quinta-feira, 20 de outubro de 2016

#44 - CANTO DE BAR, Mário Dionísio

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar,
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharm vidas que não puderam ter.
Onde cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.,
mulheres de todas as raças de cabelos degrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares...)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

#43 - É ASSIM, A MÚSICA, Eugénio de Andrade

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
-- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração -- por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.

Beja, 18.7.97