quarta-feira, 9 de novembro de 2016

#45 - CORAL, Eugénio de Andrade

É um dos corais de Leipzig,
o quarto. Sem saber como, desceu ao chão
da alma. A música
é este abismo, esta queda
no escuro. Com o nosso corpo
tece a sua alegria,
faz a claridade
dos bosques com a nossa tristeza.
Pela sua mão conhecemos a sede,
o abandono, a morte. Mas também
o êxtase de estrela em estrela.
E a ressurreição.

Foz do Douro, 19.9.97

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

#44 - CANTO DE BAR, Mário Dionísio

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar,
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharm vidas que não puderam ter.
Onde cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.,
mulheres de todas as raças de cabelos degrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares...)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

#43 - É ASSIM, A MÚSICA, Eugénio de Andrade

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
-- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração -- por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.

Beja, 18.7.97

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

#42 - TERRA, Fernando Namora

1

Lá em cima, o campanário branco e o galo dos ventos.
A torre deve dez metros de altura ao brasileiro dos Casais.
Meu avô doou um pedaço de quintal. Os outros fizeram o resto.
E hoje -- badalão! badalão! -- toda a serra
tem os ouvidos claros para o som de bronze.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

#41 - CANCIÓN, Antonio José Ponte


Pasé un verano intero escuchando ese disco.
Para que la emoción no se le fuera
lo escuchaba una vez cada día.
Si me quedaba hambriento salía a caminar.

A su manera la luz cantaba esa canción,
la cantó el mar, la dijo
un pájaro.
Lo pensé en un momento:
todo me está pasando para que me enamore.

Luego se fue el verano.
El pájaro
más seco que la rama
no volvió a abrir el pico.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

#40 - JAZZ, Claudia Roquette-Pinto

a noite tece ao redor.
há uma lua uma abó
bada um rosto de lilian gish
que alguém deixou de propósito,
atrás da mureta a
aspereza azul levita
e torna a afundar
abrindo prata e ror nessa hipnose.
correm notas pela escada
pérolas          as teclas
os degraus.
eis:                e depois
um sax desperta flores nos quadris.

de que lugar em mim verto esse caos?

sábado, 3 de setembro de 2016

#39 - STARS FELL ON ALABAMA, Frederico Barbosa

Cannonball plantando o tema
bala de som
redondo e reto
brilho de balão.

Nós e o nosso drama
beijo em campo branco
coração martelo
e lá no centro
eu e você.

Cannonball colhendo tempo
som canhão de pesadelo
no rosto o sopro negro
«dos combates que vão dentro do peito».

Estrelas caindo aqui
ontem, a noite
plano imaginado
e lá no centro
Cannonball arde por dentro.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

#38 - NOCTURNO, Gastão Cruz

É tão
estranha a paz
que não ter paz me traz (ouvir outrora
os Nocturnos a uma hora
como esta tão longe de tudo vendo embora
as luzes que se acendem nas
janelas em frente
bastaria
para que a nuvem da melancolia
sobre mim derramasse
a água sufocada)
como se, para sossegar, a vida
precisasse
de se sentir perdida.