segunda-feira, 4 de maio de 2015

#37 - TENDERLY, Frederico Barbosa

Claro
som
sem
brumas
redescobre
Debussy.

Incerto azul
de bardo
índigo
Mallarmé
desperto
ecoa.

O fauno é outro
e se levanta
em clarinete
sobre a lagoa
mar Ellington piano.

A orquestra é uma cobra
ninfa seduzida
à sua volta
o clarinete
olhos abertos
evoca vento
acorda e nos devora.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

#36 - AO LONGE OS BARCOS DE FLORES, Camilo Pessanha

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
-- Perdida voz que entre as mais se exila,
-- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém... Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

segunda-feira, 13 de abril de 2015

#35 - ALLEGRO, Thomas Tranströmer

Toco Haydn depois de um dia infeliz
Experimento nas mãos um suave ardor.
As teclas obedecem. Batem brandos martelos.
A tonalidade é verde, viva, aprazível.
A tonalidade diz que a liberdade existe
E que alguém se nega a pagar imposto ao imperador.
Meto as mãos nos meus bolsos-haydn
E faço de conta que encaro o mundo com calma.
Iço depois a bandeira-haydn, que significa:
"Nós não nos rendemos, mas queremos paz."


(versão de Alexandre Pastor)

sábado, 21 de março de 2015

#34 - STELLA BY STARLIGHT, Frederico Barbosa

Quem viu estrelas
ouviu aquelas 
perdidas vias velhas:

O som do rio aflito
a tarde triste em guarda
a penumbra arde em arrebol
a sinfonia astral amarga
o rouxinol perito provençal.

O som é tudo o que se adora
é tudo isso e muito mais:
um tema grego antigo
Stella By Starlight
lua trançada no cabelo
voz de desconcerto.

Tontura alta dos amantes
dribla dentro explode em canto.

terça-feira, 10 de março de 2015

#33 - SOLITUDE, Frederico Barbosa

A cadeira ainda espera
no seu canto.

Há dias que é só cair
sem sentido ou movimento.

Ella em prece
Barney no lamento.

Há dias que só
desmaio de tempo.

A cadeira desespera
noite canto.

Ella em prece
Barney no lamento.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

#32 - MAVIKIS, Rui de Noronha

De manhãzinha, a mata ainda escura,
Ainda dormindo os colibris nos ninhos,
Partem cantando uma canção obscura,
Em variados grupos, ou sozinhos.

Segura a mão calosa a moca dura.
E eles a cantar pelos caminhos
Antigas tradições de ida bravura,
Canções obscenas, ritos de adivinhos...

Já fogem as estrelas derradeiras,
E acendem-se as grotescas maçaleiras
À luz do sol fecunda e abrasadora.

Já chegam à cidade, -- mas o canto,
Que os trouxe de tão longe, irá entanto
Suavizando a faina o dia fora...

sábado, 21 de fevereiro de 2015

#31 - MOONLIGHT IN VERMONT, Frederico Barbosa

Pérolas às poças,
telegramas na água.
Encontros românticos
sob folhas de luar.

Venenos de Verlaine
espelhadas em Vermont.
Ventos de outono no verão,
raios de neves marrom.

Uma letra é uma letra,
mas a voz Ella penetra
em flecha a nota certa.

Encontra a rota aberta
no rio das notas Oscar,
ar que a luz-voz refresca.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

#30 - JAZZ, Ricardo Mainieri

O jazz 
aquece a noite
generoso sopro
substitui a escuridão.

Charlie Parker 
passeia
invisível pela sala
se instala
no lado avesso da razão.

A raça humana
cartesiana
sai em busca de outros tons.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

#29 - BEATITUDE, Nuno Júdice

No paraíso, na idade de ouro,
ouvindo os anjos tocarem alaúde
e flauta, as nuvens acorrem
como ovelhas
à sua beira. Então, os santos
pegam nas tesouras e começam
a tosquia das nuvens. Lá
em baixo, nos prados onde as almas
se juntam, começa a chover: e como
já não haverá guarda-chuvas,
na idade do ouro,
as almas constipam-se,
amaldiçoando
as ovelhas, as nuvens
e os santos. Só os anjos, continuando
a tocar, se riem, beatíficos, ouvindo
o bater da chuva
por entre o espirrar
das almas.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

#28 - QUERO SER TAMBOR, José Craveirinha

Tambor está velho de gritar
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem azagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

#27- "Ia pela ponte de Waterloo", João Miguel Fernandes Jorge

Ia pela ponte de Waterloo
passou um milénio sobre o teatro
tudo era luz.
Parámos na fábrica dos azulejos os fumos
cobrem as ruas vêm dos esgotos movem-se
«e também há alguns autênticos
verdadeiros americanos, são russos.»

Uma rapariga tem sempre a sua música
leva o dinheiro apertado num saco bordado
o retrato da amada na outra mão.
Podia muito bem ter pintado o rei nesse outono
não havia heróis nem escudos
os temas estavam tão batidos aproveita-se o
contrabaixo um negro igual a todos vai
pelas ruas sem nenhum proveito
já nem sequer ouvia a voz dos dedos.

Acabei de ler algumas frases
do meu caderno. O Auden do trompete
assobiava. Tinha um sweater de lã
muita tosse. Um olhar de alegria seguia de
novo o novo tema.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

#26 - "sentado", José Duarte

sentado
tinha uma bela mulher debaixo de cada braço
negras
o turista branco, medroso, aproximou-se
como se ele fosse um Papa que era
pediu-lhe um autógrafo
Charlie, lá do alto da sua merecida imponência, mediu-o
olhar curioso, desprezante
'que estás a qui a fazer no 'Baron's, em Harlem?'
'vim ouvir Gene Ammons'
sorriu pouco
desamparou uma negra
assinou o papel
Mingus esqueceu o turista
o turista não esqueceu Mingus

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

#25 - CHARANGA, Fernando Grade

Estes soldados de azul passaram para baixo
a ganga frenética, os olhos com ferrugem de rio.
As botas batiam no solo ao som da música,
havia as árvores em fuga e os pássaros,
uma criança de caracóis (o bibe verde...)
levantava voo no açúcar de um sorvete.

Máquinas festivas tecidas de pulmão e trevo
a infância chegava em estátua de barro
um cheiro musguento a uvas e
os trombones subiam na rede, as flautas
rasgavam o medo, as mãos ágeis poisadas
em abeto imaginário: o coração à solta.

Estes corpos suados e com galochas
trazem sargaços no tocar: há uma salsugem
solitária a muitos, beijos de sal que
(rompendo os saxes) adoçam os gestos,
desfazem a mínima gravata e atingem a água
com radar de serpente, água música.

Charanga de metal e sustos onde a pedra rei é mulher
e os soldados vingam-se em saliva de sons.
-- Quem deitou fogo ao piano que não há?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

#24 - "Era de noite" - José Andrade (Zan)

Era de noite
Estava com a maria da purificação que falou:
-- aliança perdida no mar dá azar!
-- ou sorte
-- sim...

ouvia-se um trio com trompete de chet baker
-- eu usava aliança quadrada!
-- Ahh essas são antigas! A minha era fininha...

A voz de chet baker a cantar é como uma vadiagem ébria

-- ...aqui ainda é assim; não sei como será lá nas outras bandas!...

era noite a fingir de fantasias entre objectos silenciosos e livros
com dedicatórias de relações que o tempo ultrapassa inventando
outras façanhas d'amores e conversas tantas como nus & loucos
do daqui a pouco nascer do dia