domingo, 28 de dezembro de 2014

#23 - MONK IS GONE, João Henrique de Oliveira Barros

And now, Thelonious?

Um nome nas discografias nacionais
Uma referência em programas radiofónicos e televisivos regulares

Uma nota snob em discoteca de curiosos
Um espontâneo esquecimento
Daqueles que nunca te amaram

Mas
Sempre no cerne da memória
Mesmo daqueles que se exasperavam com o teu TEMPO

E na daqueles
Que com sofreguidão não simulada
Sorviam o licor agridoce
Que espargias com a polpa dos teus dedos

sábado, 27 de dezembro de 2014

#22 - COMO PODERÁS ENTENDER?, José Agostinho Baptista

lembro-me sobretudo desses dias.

depois do sol tu vinhas.

eram belas as túnicas de argel e as velhas botas espanholas que te
dera o último amante.

o john lennon gritava
                        give me some truth
                                                give me some truth
e tu rias
                        rias como em noites de festas pagãs.

hoje
sentado neste bar quinhentista e fluvial de um país sonâmbulo
a máquina de discos repetindo êxitos da década 60
os pequenos barcos do rio dirigem-se para oeste
enquanto os marinheiros do passado há muitas horas bebem aguardente.
TU

perdida nas vertiginosas danças bárbaras como antigamente
como poderás entender esses lugares de paixão
onde me sento e bebo
ouvindo as histórias da época prodigiosa?

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

#21 - QUALQUER MÚSICA, Fernando Pessoa

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música -- guitarra,
Viola, harmónio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não a vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!

domingo, 21 de dezembro de 2014

#20 - "Thelonious só amado pelo nome", José Duarte

Thelonious só amado pelo nome
estranho
Thelonious cagança da burguesia surda e bem cheirosa
Monk senhor dos espaços
Monk cavalheiro das dissonâncias
Thelonious Monk gigante de chapéu

domingo, 14 de dezembro de 2014

#19 - HERBA SANTA, Mário Avelar

Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.

Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.

Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?

Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

#18 - POEMA, José Gomes Ferreira

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

#17 - MADAME BUTTERFLY, VELHA, Pedro Tamen

Engano: não, não me matei,
suguei
a vida que outros deram.

Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.

E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.

domingo, 30 de novembro de 2014

#16 - FLASH DE JOHN COLTRANE, António Barahona

para Rão Kyao

a ouvir Stardust de John Coltrane
o meu destino é este debruçado na
pirâmide com o coração aberto em quatro
de maneira esfíngica no deserto sempre
que outro lugar não há à mercê de ser
livre dono da deriva do barco

7-10-77

sábado, 15 de novembro de 2014

#15 - "AVE-MARIAS" NA MINHA ALDEIA, Bernardo de Passos

"Tudo quanto há neste vale é cheio duma lembrança triste..."
                                                                                                                                                                                                                                                                 Bernardim Ribeiro

Da torre, tange o sino brandamente
"Ave-Marias", pela branca aldeia,
Enquanto vem dum lado, a lua cheia,
E doutro, se despende o sol-poente...

Pelos freixos do "Pego", em minha frente,
Cansado já, um rouxinol gorgeia.
Vagam murmúrios d'água que serpeia,
-- Fontes deixando o vale, saudosamente...

E alguém vai cantando, estrada fora,
Um fado triste como a voz do mar
E o vago soluçar das ventanias...

Ó meu Amor! quisera, nesta hora,
Reclinar-me no teu seio, p'ra chorar,
Enquanto o sino tange "Ave-Marias"...

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

#14 - IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO, Fernando Pessoa

I
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minh'alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
és para mim como um sonho --
Soas-me na alma distante...

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

#13 - SINOS AO LONGE, Afonso Lopes Vieira

Chegam de longe
Vindas na aragem,
Imagens débeis
De bronzes finos...
E, cristalinas,
Pousam na aragem,
Na aragem vaga,
Flébeis e finas,
Como essas penas
No ar, serenas,
Que o ar afaga
Só de ampará-las
E suspendê-las.
Expiram longe,
Ida na aragem,
Imagens débeis
De bronzes finos,
De coisas flébeis...

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

#12 - COIN, 1994, Manuel de Freitas

Gostava de poder dizer não
ao ruído do mundo.
Mas já recolhem o lixo, choveu demasiado,
e eu aperto sem convicção
o cinto verde que me cala o estômago.

Estaríamos, até, a falar da morte
-- não fosse este o vigésimo
domingo a seguir à Trindade.
Tronos e dominações mo dizem,
numa rua de Lisboa que
fica, às vezes, tão perto de Leipzig.

Não abdicarei, é claro,
«dos escuros abismos do pecado»
-- que em alemão se dizem doutra maneira.

Pecado, maior, é tentar traduzir a música.

#11 - A MÃO SOBRE O CADÁVER, Luís Adriano Carlos

Hoje a tua mão pousou
sobre o cadáver daquela música.
E ao longe um bando de violinos
ressuscitou-lhe a alma.

A minha mão repousa
sobre a música do teu cadáver.
Uma banda de violinos
interpreta a tua alma.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

#10 - SITUAÇÃO, Levi Condinho

No coreto do vazio
uma banda inexistente
toca músicas nocturnas
já ninguém escuta o concerto
ninguém baila já no adro
as cadeiras estão vazias
e o terreiro abandonado

mas a banda vai tocando
na noite fria e esquecida

sábado, 16 de agosto de 2014

#9 - MORNA, António Nunes

As mesmas casas... as mesmas ruas...
o mesmo largo...
Só os rostos dos homens é que não são os mesmos
e, ébrios, os braços pendem, os homens tombam...

Som de violino escapando-se da casa térrea.
Cheiro a petróleo e a fumo.
Quêrèna treme os dedos sobre as cordas,
olhos vidrados, berra por mais gróg!

Titina sente-se frágil sob os braços de Armando.

A Morna traz ao corpo a lassidão e o sonho,
como a lua pondo sombras em coisas impossíveis...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

#8 - NÚMERO DOIS, João Camilo

Beethoven, concerto número dois para piano.
Com um canivete corta-me devagar por dentro
a parte da alma mais encostada à carne.
O prazer que a Camões também doía e as palavras
de depois de inventá-lo. O sol que brilha e ilumina
o verde das primaveras que nesta se repetem. Enu-
merar: como quem coloca cada som depois do outro
e parte para a solidão. Uma lâmina pequena corta-me
por dentro das próprias veias no meu corpo
desconhecido as mais pequenas fibras. E sei que
existem e é delas que se extrai
a revolta com que vou nascendo para
ver-me de pé enquanto reaprendo
a não esquecer que um dia finalmente
tudo terá passado. E esta aventura
de estar aqui hoje há-de perder-se
no tempo que consome tudo e nos consome
a nós o uso de nós mesmos. Afeiçoarei o meu
corpo cada dia mais definitivamente à imagem
da pequena morte que nos chega que toca
os olhos na retina os ouvidos na membrana
do tímpano e passa a circular no sangue com a
embriaguez. Assassínio lento de mim mesmo,
Claudio Arrau pianista chileno vai
pontuando o tactear da lâmina
no meu corpo e eu sentado contemplo as cores
dos objectos à minha volta e vou dando pelo
espanto de assistir à passagem de mim
mesmo pelo que me rodeia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

#7 - 1979, Pedro Strecht

muito tempo antes
parece agora breves minutos
as mesmas tardes passadas brincando
os jogos de caixa o estojo das experiências
não podíamos evitar as de explosão
subutteo a raspar os joelhos
os longos relatos pela rádio noite fora
portugal campeão mundial de hóquei
os duelos do rali serra acima
até o sono chegar à hora certa
e então subitamente a mudança
como era possível algumas pessoas a música
baterem tão fundo ao coração
e disso alguma impossibilidade de partilhar
os segredos profundos da intimidade
traduzindo-se noutra forma de olhar
para quem conhecemos bem ou talvez não
e depois saber que o caminho era em frente
sentir o passado tão forte e não parar
o desejo de descobrir a crescer
recordo ver cair a noite envolvendo
depois de um banho tomado
o cheiro a água-de-colónia espanhola
quando o primeiro calor chegava
finalmente dormir de janela aberta
algum barulho repetido sincopado de carros
embalava ainda mas tudo estava diferente
e de repente já não era a rita coolidge
envolta num mel lustroso
a cantar que lá fora a chuva começara
era joy division a abrir na guitarra
o amor vai dilacerar-nos uma voz profunda
a maior distância era essa
tão forte mas tão pessoal
que não valia a pena contá-la
tão-somente vivê-la e dizer assim
este sou eu e quem vier a conhecer-me
leva-me já

#6 - "Trovoa na minha cabeça, mas o médico", Helder Moura Pereira

Trovoa na minha cabeça, mas o médico
diz que não é nada. Ecoam vibrações
nos meus pulsos, linhas trocadas no pescoço.
Só pode ser por tua causa, ser desconhecido.
Que me invades carro, casa e coração.
Comboio, táxi, local de trabalho.
Quarto, sala, cozinha, televisão.

Reconheço a penumbra desta garagem
onde vens pôr o carro diariamente.
Marquei as tuas horas na minha memória
e quando à hora certa sinto o barulho
do teu escape atrapalham-se-me as mãos
nas chaves e desengato do porta-chaves
o emblema do carro. Tanto nervosismo
é real? Bom dia, digo, e são já dezanove
e quarenta e cinco, um quarto para as oito.

O teu cansaço é real. Pões agora numa casa
ritmos fáceis, não obedecem a qualquer
contradição, fazem-se porque têm
de se fazer, se tu não os fizeres
quem os fará? Somos dois burros
a lutar cabeça com cabeça, as malhas
do amor enredaram-nos de tal forma
que nos parece tragédia ter um corpo.

Ainda assim te espero como se fosses
um ser desconhecido, para quem eu
preparasse um jantar especial. E repito
a velha imagem de filmes, peças
de teatro, vida real, mostrando o tempo
a passar e a mesa posta para dois.

Vai começar a terceira série do Prison
Break, aproveito a publicidade
institucional para abrir a garrafa,
fatiar a carne. Acendo a vela e ponho
o guardanapo nos joelhos, estou só,
ninguém veio, Quincy Jones tocou
este tempo todo, acompanhado
por uma grande orquestra cheia de estrelas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

#5 - DA FERIDA, Fiama Hasse Pais Brandão

Regresso, depois da litania,
à contemplação sem voz.
A memória da música é
amarga, quando estou só.
Os quartetos de Beethoven
arrancam-me uma parte
do corpo em substância.
Ferida, terei de ir ainda
à cidade dia a dia.

#4 - OS NAMOROS DE VERÃO, José Jorge Letria

O namoro durava o que durava um Verão,
tanto e tão pouco, quase nada.
Era um sopro, uma embriaguez,
um êxtase, com o mar ao fundo
a trazer para o areal algas e conchas,
restos de comida, garrafas vazias,
objectos náufragos, nomes de sereias.
O Verão, às vezes, durava uma vida.
Outras vezes durava uma noite.
Havia uma canção que marcava a cadência
da paixão volátil: Smoke Gets in Your Eyes.
Como seria ridículo dizer isto em português.
Depois havia as cartas e os retratos
com dedicatórias lembrando aquele Agosto,
aquele passeio de barco, aquela
madrugada no Palm Beach
ao som do Yesterday. Era tão veloz
esse tempo que parecíamos envelhecer
uma vida em cada semana.
Se morria um amigo, era como
se morresse para sempre a magia do Verão.
E nunca mais houve amores
como esses, primordiais e inocentes. Totais.
Voltar a eles é tão impossível
como voltar ao aconchego do ventre materno.
O namoro durava apenas um Verão,
mas é sempre a ele que voltamos
quando a palavra amor nos queima os lábios.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

#3 - QUIZÁS, QUIZÁS, QUIZÁS, Vasco Graça Moura

quando se está com gripe e nos dói toda a cara
o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar 
quizás, quizás, quizás

a voz de um era rouca na curva do bolero
e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta a siempre que me preguntas

e triste era o refrão, 
quizás, quizás, quizás.

na música e na vida, algum desesperado,
mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alcoolizado, pelas melancolias
da voz e do piano, 
quizás, quizás, quizás.

nat king cole e mozart, depois de improvisarem,
fumaram um cigarro e foram-se trocando
trauteios, estranhezas, de 
blues e de sonatas,
mas tudo fragmentário, 
quizás, quizás, quizás.

se algum saxofone pegasse nesse tema,
juntando variações azuis e lancinantes,
podíamos ouvir um köchel qualquer coisa

be bop e dissonante, quizás, quizás, quizás.

e voltaria a voz em ritmos sacudidos,
no bar, na discoteca, nas sombras, nas entranhas.
nat king cole a cantar, mozart a acompanhá-lo,
ah, turvos corações, 
quizás, quizás, quizás.

#2 - ELLA, João Pedro Mésseder

Esta voz
-- confia --
faz da noite
o tesouro do dia

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

#1 - G.F.H., José do Carmo Francisco

E de novo me confronto consigo sem coragem
Repare que não estamos em Dublin
Nem este nevoeiro é o seu nesta manhã
Nem o disco reproduz totalmente a sua escrita.

Encolho-me nas definições de quem percebe
Cito Beethoven com facilidade mas não chega
E a sua perfeição não me provoca qualquer náusea
Antes me atrevo a repetir as audições

Se a perfeição existe você é então perfeito
Os sons arrumados na pauta são desenhos
E a realidade que retratam não existe
Apenas o seu mundo a compreende